
« Nosso Senhor diz aos seus Apóstolos: Se vos não converterdes e vos não tornardes como meninos, não entrareis no reino dos céus. São Paulo acrescenta: o Espírito Santo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus, e aconselha-nos frequentemente uma grande docilidade ao mesmo Espírito Santo. Esta docilidade encontra-se particularmente na via da infância espiritual, recomendada por muitos santos e, ultimamente, por Santa Teresa do Menino Jesus [nota minha: e por S. Josemaría Escrivá]. Esta via, tão fácil e proveitosa para a vida interior, é muito pouco conhecida e seguida.
Por que pouco seguida? Porque muitos imaginam erroneamente que esta é uma via especial, reservada às almas que se conservaram completamente puras e inocentes; e outros, quando lhes falamos desta via, pensam numa virtude pueril, uma espécie de infantilidade, que não lhes poderia convir. Estas idéias são falsas. A via da infância espiritual não é nem uma via especial nem uma via de puerilidade. A prova é que foi o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo quem a recomendou a todos, mesmo aos responsáveis pelas almas, como os Apóstolos por si formados.
Para se ter uma visão de conjunto da via da infância espiritual, é preciso de início notar as suas semelhanças e, em seguida, as suas diferenças com a infância corporal.
As semelhanças são patentes. Quais as qualidades inatas das crianças? Em geral, são simples, sem nenhuma duplicidade, ingênuas, cândidas; não representam, não se mascaram; mostram-se tal como são. Ademais, têm consciência da sua deficiência, pois têm de receber tudo dos seus pais, o que as dispõe à humildade. São levadas a crer simplesmente em tudo o que dizem as suas mães, a depositar uma confiança absoluta nelas e a amá-las de todo o seu coração, sem cálculo.
Quais as diferenças entre a infância ordinária e a infância espiritual? — A primeira diferença é notada por São Paulo: Não sejais meninos na compreensão, mas sede pequeninos na malícia. A infância espiritual distingue-se da outra pela maturidade do julgamento e de um julgamento sobrenatural inspirado por Deus.
Uma segunda grande diferença é indicada por São Francisco de Sales: na ordem natural, quanto mais o filho cresce, mais ele tem de se tornar auto-suficiente, pois um dia o seu pai e a sua mãe lhe faltarão. Pelo contrário, na ordem da graça, quanto mais o filho de Deus cresce, mais ele compreende que não poderá jamais bastar-se a si próprio e que dependerá sempre intimamente de Deus. Quanto mais ele cresce, mais ele deve viver da inspiração especial do Espírito Santo, que vem suprir pelos seus dons a imperfeição das nossas virtudes, de modo que, no fim, o filho de Deus torna-se mais passivo sob a ação divina do que entregue à sua atividade pessoal e no fim entra no seio do Pai, onde encontrará a beatitude por toda a eternidade.
Os rapazes e as meninas, quando chegam à idade adulta, deixam os seus pais para viverem as suas vidas. Mais tarde, o homem de quarenta anos vem com bastante frequência visitar a sua mãe, mas não depende dela como antes. É ele agora que a sustenta. Pelo contrário, o filho de Deus, ao crescer, se é fiel, torna-se mais e mais dependente do seu Pai, até que nada faça sem ele, sem as suas inspirações ou os seus conselhos. Então, toda a sua vida é banhada pela oração; é a melhor parte que não lhe será tirada. Santa Teresinha de Lisieux o compreendeu assim. Ela, após ter atravessado a noite do espírito, chegou desse modo à união transcendental com Deus nela.
Tais são as características gerais da infância espiritual: as suas semelhanças e as suas diferenças com a infância corporal.
Vejamos agora as principais virtudes que se manifestam nela.
De início, a SIMPLICIDADE, a ausência total de duplicidade. Por que? ... porque o olhar desta alma não procura senão a Deus e vai direito a ele. Assim, verifica-se aquilo que é dito no Evangelho: O teu olho é o espelho do teu corpo. Se o teu olho for simples todo o teu corpo será luz. Mas, se o teu olho for mau, todo o teu corpo estará em trevas. Do mesmo modo, se a intenção da tua alma é simples e direta, pura e sem duplicidade, toda a tua vida será iluminada como o rosto de uma criança.
Então, a alma simples, que tudo sempre considera com relação a Deus, acaba por vê-lo nas pessoas e eventos; em tudo o que acontece, ela vê aquilo que é desejado por Deus, ou, ao menos, que é permitido por ele para um bem superior.
HUMILDADE. Ao seguir esta via, a alma torna-se humilde. A criança tem consciência da sua deficiência; depende da sua mãe para tudo e pede constantemente a sua ajuda, ou refugia-se perto dela à menor ameaça.
Do mesmo modo, o filho de Deus sente que, deixado a si mesmo, não é nada; lembra-se com frequência das palavras de Jesus: Sem mim, não há nada que possais fazer. E assim, ele tem uma necessidade instintiva de se esquecer de si mesmo, de depender de Nosso Senhor, de se abandonar a Ele. A alma cessa de se estimar de modo vão, de querer ocupar um lugar no espírito dos outros; desvia o seu olhar de si mesma.
Por causa disso, essa alma combate muito eficazmente o amor próprio. E, com o sentimento da sua deficiência, experimenta a necessidade de se apoiar constantemente em Nosso Senhor e de ser em tudo guiada e dirigida por ele. Lança-se assim nos seus braços, como a criança nos braços da sua mãe. Por isso, o espírito de oração desenvolve-se muito nela.
FÉ. Assim como o filho crê sem hesitar e firmemente em tudo o que a sua mãe lhe diz, o filho de Deus, acima de todo o raciocínio, de todo o exame, baseia-se totalmente na palavra de Nosso Senhor. “Jesus o disse”, seja por si mesmo, seja pela sua Igreja; isto é suficiente para que ele não tenha nenhuma dúvida no seu espírito.
Que se segue? Assim como a mãe fica feliz em poder instruir o seu filho, tanto mais quanto ele se mostrar atento, Nosso Senhor compraz-se em manifestar a profunda simplicidade dos mistérios da fé aos humildes que o ouvem. Ele dizia: Dou-vos graças, ó Pai, por terdes escondido estas coisas dos prudentes e dos sábios e por tê-las revelado aos pequenos. A fé dessa alma torna-se então penetrante, saborosa, contemplativa, radiante, prática, fonte de mil conselhos excelentes. O espírito da fé leva a ver os mistérios revelados, as pessoas, os fatos como Deus os vê; vê-se Deus em tudo.
Mesmo que o Senhor permita a noite escura, a alma a atravessa a segurar na sua mão, como o filho segura a mão da sua mãe, que o protege.
A CONFIANÇA torna-se, desde então, mais e mais firme, inteira. Por que? ... porque ela repousa no amor de Deus por nós, nas suas promessas, nos méritos infinitos de Nosso Senhor.
Como a criança está segura da sua mãe, porque se sabe amada por ela, a alma de que falamos está segura de Deus. Ela não pode duvidar da sua fidelidade em manter as suas promessas: pedi e recebereis. Ela não se baseia nos seus próprios méritos, na sua sorte pessoal, mas nos méritos infinitos do Salvador, que são para ela; do mesmo modo, os bens do pai são para os seus filhos que ainda não possuem bens pessoais.
A fragilidade a desencoraja? De modo algum. O filho não se desencoraja por causa da sua deficiência. Pelo contrário, ele sabe que é por causa da sua impotência que a sua mãe está sempre pronta para protegê-lo. Do mesmo modo, Nosso Senhor sempre protege os pequenos e os pobres que se fiam nele. O Espírito Santo, que ele nos enviou, é chamado “Pater pauperum”.
Esta alma não confia senão em Deus, em Nosso Senhor e na Virgem, e naqueles que vivem de Deus, como a criança não confia senão na sua mãe e naquelas pessoas a quem a sua própria mãe a confia por um momento.
É uma confiança total, mesmo nas horas mais graves. Lembramo-nos então do que dizia santa Teresinha: “Senhor, vós tudo vedes, tudo podeis e me amais”.
O único temor desta alma é o de não amar o bastante Nosso Senhor, de não se abandonar totalmente a Ele.
A CARIDADE é o amor de Deus por ele mesmo, e das almas em Deus, para que elas o glorifiquem no tempo e na eternidade.
A criança pequena ama a sua mãe de todo o seu coração, mais que os carinhos que recebe dela; ela vive da sua mãe.
Do mesmo modo, o filho de Deus vive de Deus e o ama por si mesmo, por causa das infinitas perfeições que nele transbordam. O que este filho de Deus ama, não é a sua própria perfeição, mas o próprio Deus, sobre o qual ele se apóia.
A este amor ele refere tudo: é um amor delicado, simples, que inspira a piedade filial e uma grande caridade pelo próximo, na medida em que este é amado por Deus e chamado a glorificá-lo eternamente.
O filho de Deus, porém, é tão prudente como simples: simples com Deus e as almas de Deus; está sob a inspiração do dom de conselho e é prudente com aqueles em quem não podemos ter confiança.
Ele é deficiente, mas é do mesmo modo forte, pelo dom de fortaleza que se manifestou nos mártires, e até nas jovens virgens e nos velhos.
Um modelo impressionante de infância espiritual encontra-se numa alma santa, que atingiu, no meio das maiores dificuldades, uma grande intimidade com Nosso Senhor: a Venerável Madre Marie-Thérèse de Soubiran, fundadora da Sociedade de Maria Auxiliadora. A sua vida admirável mostra-nos a enorme superioridade da vida sobrenatural plenamente abandonada a Nosso Senhor, acima da atividade natural das pessoas melhor dotadas e mais enérgicas, que se apóiam sobre elas mesmas, que se esquecem de pedir a bênção de Deus.
A sua vida é um comentário das palavras do Salvador: Dou-vos graças, ó Pai, por terdes escondido estas coisas aos prudentes e aos sábios e por as terdes revelado aos pequeninos.»
(Garrigou-Lagrange, "La vie spirituelle" número 302, dez. 1945)
Fonte: Vida Espiritual Católica
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