CORPUS CHRISTI
A FESTA DE DEUS OFERENTE.
As palavras, mantidas na língua latina original, expressam a força impressionante desta celebração de um dos maiores mistérios da fé crista: a presença eucarística de Jesus Cristo nas espécies do pão e do vinho.
Quando afirmamos que a fé reflete sempre o mistério, sabemos que este dogma da presença verdadeira de Jesus na Eucaristia revela esta grandeza de Deus. Pensando neste mistério, podemos concordar com os grandes pensadores que afirmam que a fé é a crença do coração humano nas verdades mais absurdas. Não faço esta reflexão para tornar estranho este mistério; antes para exaltar a grandeza deste mistério.
Quando acompanhamos as procissões de Corpus Christi, estamos participando da celebração de um grande mistério. Deus, in persona, está passando por nossas ruas, por nossos bairros e diante de nossos lares.
UMA HISTÓRIA FASCINANTE...
Para entender o mistério da presença divina na Eucaristia, que é a doutrina fundamental desta solenidade cristã, recorro a uma anedota narrada por um bandeirante português.
Conta este bandeirante, que um grupo de desbravadores foi aprisionado por uma tribo de canibais nas florestas do Brasil. Ele descreve, diante da coroa portuguesa, em Lisboa, como os indígenas preparavam a morte dos prisioneiros, através de fogueiras, danças e músicas. Contava com espanto, como seus companheiros tinham sido mortos e devorados pelos canibais.
No final de sua narrativa, alguém lhe pergunta, como então pode escapar da morte e fugir, estando ele no coração das selvas, entregue aos devoradores.
Conta ele, então, que todas as vezes que os indígenas preparavam o ritual de sua morte, ele entrava em desespero, chorava, gemia e tremia. De tanto medo, fazia suas necessidades diante de todos. Por esta razão, nunca poderia ser devorado, pois os indígenas acreditavam que se o devorassem, estariam devorando seu medo e sua covardia. Como devorar a pessoa, significava receber seu dons e seus valores, jamais os indígenas comeriam as carnes e beberiam o sangue de um covarde.
Este sentido antropológico dos povos antigos e dos hebreus, referentes ao sacrifício do cordeiro, dão o sentido do Corpus Christi: “comer o corpo e o sangue de Cristo, significa receber seus dons, suas graças e sua grandeza.
Corpus Christi é a festa que manifesta que o Cristo está presente entre nós, vivo nas espécies do pão e do vinho.
BREVE RETROSPECTIVA HISTÓRICA
A maioria dos estudiosos aponta o século XII, na Igreja de Roma, como a origem desta festa. Portanto, é uma festa muito antiga e celebrada ao longo dos séculos.
Esta datação da festa não significa dizer que a crença na presença real de Cristo na pão e no vinho vem deste período. Isso seria totalmente incorreto.
Desde os primeiros momentos da formação das comunidades cristãs, fomentadas pela pregação dos discípulos, encontramos a celebração da Ceia do Senhor. De forma implícita, existe neste ritual a convicção que o pão e o vinho, partilhados na celebração ( que rememora da Ceia da Quinta Feira Pascal) representam mistério para os fiéis. Tanto é verdade, que os presbíteros levam o “pão da bênção” para os enfermos e encarcerados. Além disso, com o tempo os epíscopos e presbíteros conservam estas espécies em vasos especiais, distante dos ímpios e profanadores. A partir do século III, encontramos as expressões como “consagração” e “transubstanciação”, aplicados ao mistério transformador dos alimentos da ceia.
Estas convicções estão presentes na fé das comunidades, tanto que encontramos um “tabernáculo”, ornado de metal e com velas acesas, para demarcar a presença das espécies consagradas no templo, particularmente o pão.
Com o grande crescimento de seitas no início do primeiro milênio, as quais duvidavam da presença real de Cristo Eucarístico, os fiéis iniciam procissões públicas, para manifestar e ostentar a convicção na presença real do Senhor vivo.
Estas procissões eram muito solenes e festivas, com enfeites de flores, tapetes nas ruas e na frente das casas, assim como a caravana de animais e altares alegóricos.
Desde então, esta festa foi sempre grandiosa. Mas ela tornou-se ainda mais marcante depois do século XVI, com a grande divisão dos reformadores (Calvino, Zwinglio e especialmente Lutero), os quais negavam a presença real de Cristo na Eucaristia. M. Lutero considerava mesmo este dogma como um aprisionamento de Cristo.
Em resposta a estes reformadores, os cristãos católicos incrementaram ainda mais as procissões de Corpus Christi e iniciaram novos rituais litúrgicos, como adorações perpétuas e rituais de entronização do Sacrário nas casas dos fiéis mais devotos.
A festa de Corpus Christi continua em nossos dias, superando a dimensão apologética e valorizando sempre mais a dimensão da presença viva e real de Cristo no coração dos fiéis.
A MENSAGEM BÍBLICA
Para entendermos os fundamentos desta festa, recorremos à PALAVRA DE DEUS. Encontramos sempre o sentido mais profundo da Eucaristia, como dom de Deus ao povo. A festa de Corpus Christi, recorda a gratidão do povo hebreu que exalta a Deus pela oferenda do maná no deserto (Dt 8,2-3.14-16a). Esta oferenda celebrada no Corpus Christi, é a entrega de Jesus Cristo ao mundo para a salvação da humanidade.(Jo 6,51-59). Jesus é o pão que desceu do céu para a vida do povo. Deus se oferece por causa da Aliança com o povo. A Ceia é a festa da celebração da Aliança e a festa de Corpus Christi exalta e publica publicamente esta Aliança divina. Como nas estradas do Sinai, onde o Cordeiro foi imolado, igualmente celebramos a presença de Cristo nas praças, nas estradas, no meio do povo. Cristo é o cordeiro imolado do Sinai. Ele, por sua oferenda, rejeita todos os sacrifícios humanos ou de animais, para que o povo viva em fraternidade.
Corpus Christi nos recorda que o pão é multiplicado pela misericórdia de Deus para com os mais pobres. Quem participa da procissão de Corpus Christi se compromete com a fraternidade e a solidariedade entre os povos, particularmente os mais pobres.
A solenidade de Corpus Christi nos recorda que Deus está presente na história humana, que nós cremos em sua presença em nossas vidas e que todos os povos devem viver a partilha e a fraternidade.
OS RITUAIS E OS TAPETES.
A solenidade de Corpus Christi nos recorda a necessidade de vivermos em harmonia com a comunidade, pois ela é a manifestação de uma comunidade jubilosa,que caminha com o Senhor vivo e ressuscitado.
A beleza do ostensório, não deve representar vaidade da comunidade ou riqueza, mas a importância que a comunidade e cada fiel dá para a presença real de Deus na Eucaristia. Quando dedicamos um preciso porta-jóias para algum objeto, isso reflete o grande valor deste objeto e o valor que lhe consagramos. Assim entendemos que a beleza dos paramentos e das alfaias sagradas não são vaidade, mas a grandeza da fé da comunidade.
Do mesmo modo, entendemos que os tapetes, tão bonitos e solenes não são expressão folclórica e cultural, mas manifestam a crença da comunidade, que prepara, como nos tempos bíblicos, um tapete de flores e cores, para homenagear o mistério da Eucaristia.
A riqueza do ritual deve manifestar a fé da comunidade, seu desejo de viver e promover a sua religiosidade e a busca da construção do povo de Deus.
SENTIDO TEOLÓGICO
A teologia desta solenidade apresenta três dimensões fundamentais:
a. o passado, como representação memorial do mistério pascal, é o verdadeiro sacrifício de Cristo e sua auto-doação à humanidade, seu serviço sacerdotal ao mundo;
b. o presente, como sacramento da unidade do universo com Cristo e dos seres humanos entre si, atualiza a ação salvífica de Cristo e inaugura a fraternidade e solidariedade entre os povos;
c. o futuro, como prefiguração da nova história, é a sua transformação em Reino de Deus e a divinização da humanidade, transformada num único povo.
MEDITE E VIVA
A solenidade de Corpus Christi é muito valiosa para os cristãos, pois ela expressa a crença num dos maiores mistérios da nossa fé: a presença verdadeira de Jesus Cristo nas espécies do pão e do vinho. Afinal, este é o único mistério de nossos rituais diante do qual nos ajoelhamos, realizamos a adoração e deixamos acesa uma lamparina, como sinal de sua presença.
Se em outros tempos, estas procissões revelavam uma certa provocação apologética, sabemos que em nossos dias isso não tem mais sentido, pois a vivência da religiosidade é pessoal e muito respeitada. Os cristãos devem manifestar o seu júbilo, sem ostentação e provocação, mas para dar testemunho de sua fé.
Embora seja culturalmente e folcloricamente muito prestigiada a procissão de Corpus Christi, para os fiéis que participam de sua caminhada, é um gesto de devoção eucarística e de pertencimento à Igreja.
Com a solenidade de Corpus Christi, professamos que o Cristo está presente em nossas vidas e que devemos manifesta-lo aos irmãos, promovendo a justiça, partilhando nossos dons e vivendo coerentemente a mensagem evangélica.
Participar da procissão de Corpus Christi, significa participar de uma caminhada na direção de Deus,como povo de fé, contando com a parceria do Cristo vivo nesta caminhada. Na procissão, caminhamos para Deus e somos guiados pelo Cristo, que é nosso irmão de caminhada.
Pe. Antonio S. Bogaz, sacerdote orionita
Autor de Tempo Comum e a festa dos santos, Paulus, 2001
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